Ao leitor brasileiro descortinar-se-ão poemas regidos pelo princípio da “polaridade”, de fundamental importância tanto para a obra científica quanto literária de Goethe. E à polaridade ocidental-oriental que transparece no título da coletânea associam-se várias outras, começando com a amorosa: felicidade em poucas “folhas” e sofrimento em muitos “tomos”; o paraíso da poesia e o pesadelo da história: “tronos racham e impérios estremecem”, o que se relaciona ao posterior paralelo entre o inverno de Napoleão na Rússia e o de Timur (Tamerlão) na China em 1405; o êxtase sensível do vinho e a visão sufista de Deus; juventude (Zuleica) e velhice (Hatem); vida e morte: “morre e te transforma!”; unidade e duplicidade: “não vês tu nestas canções / que sou Um e duplicado?”; ou ainda, para citar mais um exemplo, a “polaridade” corporal que deve inspirar gratidão ao ser humano, sístole e diástole, o inspirar e o expirar: “Existem duas graças no respirar: / sorver o ar, dele se liberar. / Um refresca, o outro oprime: / a vida é assim, mista e sublime. / Graça a Deus, se ele te aperta; / dá graça a Ele se te liberta”.
Ao discorrer em sua Estética (segmento “O panteísmo da arte”) sobre a “poesia muçulmana”, Hegel delineia como conclusão um paralelo entre os “Divãs” de Hafez e de Goethe, observando que os poemas ocidental-orientais de 1819 só puderam nascer graças à profundidade e ao frescor juvenil do espírito goethiano, também “a um sentido que se espraiou pela mais ampla latitude, seguro de si em todas as tormentas”, assim como — e Hegel cita então versos do poema “A Zuleica” — graças a “um [mundo] que pulsa com ardores / que, em seu ímpeto pleno, / semelha muito aos amores / de bulbul […]”. Na perspectiva desse espraiamento “pela mais ampla latitude”, pode-se afirmar que o mergulho na tradição poética do Oriente desempenhou papel crucial na concepção de uma Weltliteratur destinada a ocupar lugar cada vez mais relevante no mundo globalizado. No contexto da então emergente Literatura Mundial os poemas haveriam de fecundar-se e renovar-se mutuamente em meio a uma “dança das esferas, harmônica no tumulto”, como formulou o velho poeta em versos que colocam ao lado da harpa do rei Davi e do bulbul de Hafez a colorida serpente brasileira encontrada muitos anos atrás na canção tupi que Montaigne comenta no célebre ensaio sobre “Os Canibais”:
Como Davi entoou a harpa e o canto principesco,
A canção da viticultora soou docemente junto ao trono,
O bulbul do persa envolve o canteiro de rosas
E pele de serpente esplandece como cinto indígena,
De polo a polo, canções se renovam,
Uma dança das esferas, harmônica no tumulto;
Deixai que todos os povos sob o mesmo céu
Animados se regozijem nas mesmas dádivas.
Duzentos anos após Goethe ter publicado seu mais extenso ciclo lírico, a extraordinária tradução de Daniel Martineschen descortina ao leitor brasileiro a possibilidade de se regozijar nesses poemas que celebram a fecunda interação entre duas grandes tradições literárias: “Grandioso o Oriente / o Mediterrâneo cruzou; / Quem ama Hafez e o entende / sabe o que Calderón cantou”.