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O Goethe de Tischbein, 1786

A contrapelo da sombria situação em que o Brasil se encontra, a obra de Goethe vem gozando de crescente interesse, sendo que nesse boom o ano de 2020 registra um expressivo marco: a primeira tradução integral em língua portuguesa do mais extenso ciclo lírico goethiano, publicado originalmente em 1819 (oito anos depois surgiria uma edição ampliada). Assinada por Daniel Martineschen (Estação Liberdade), a tradução traz um título — Divã ocidento-oriental — que de imediato pode causar certa estranheza com o adjetivo “ocidento”, não consignado nos dicionários de língua portuguesa, recentes ou mais antigos, como o Bluteau ou o Morais.

Esse eventual estranhamento talvez desperte no leitor a impressão de que ele está prestes a entrar numa oficina tradutória experimental e vanguardista, próxima às concepções, para citar um grande nome, de Haroldo de Campos, que assenta todo seu trabalho de “transcriador” sobre o pilar de uma “operação paronomástica generalizada, de Jakobson, centrada no princípio de equivalência da função poética”. Mas já a leitura dos poemas do primeiro dos 12 livros em versos que compõem o volume ocidental-oriental — o “Livro do cantor”: Moganni Nameh, na designação persa igualmente empregada por Goethe para cada livro — não confirma tal impressão e, chegando ao “Posfácio” de Martineschen, o leitor ficará sabendo que o tradutor encontrou “auxílio” antes na tradução do Fausto realizada por Jenny Klabin Segall ao longo de três décadas.

No geral, são sóbrios os recursos mobilizados pelo tradutor para transpor os poemas goethianos ao português, começando pelo empenho em reproduzir com rigor e fidelidade o esquema métrico, rímico e estrófico do original. Via de regra, procurou-se reproduzir o verso de quatro acentos e em ritmo trocaico — sucessão de acentos fortes e fracos — por meio da redondilha maior (sete sílabas), enquanto que os versos de três acentos foram transpostos com as cinco sílabas da redondilha menor. Aparentemente ocorreria assim a subtração sistemática, em relação ao original, de uma sílaba, mas ao se valer com frequência de sinalefas e elisões, Martineschen ganha a possibilidade de corresponder adequadamente à estrutura métrica dos versos goethianos. Em si essa dilatação do número de sílabas pode não constituir propriamente uma vantagem no âmbito do gênero lírico, que se distingue pela condensação. No entanto, Martineschen conquistou desse modo uma maior flexibilidade para a transposição do “sentido” presente nos poemas em que o poeta “ocidental” dialoga com seus colegas “orientais”, sobretudo o seu “gêmeo” persa do século XIV Hafez, conforme se formula na terceira estrofe do poema “Ilimitado”, com seu ritmo predominantemente trocaico de quatro acentos no original, e que na tradução oscila entre sete e (com a duplicação de “contigo”) nove sílabas poéticas: “E pode o mundo se afundar, / Hafez, contigo, contigo apenas / disputarei! Prazer e penas / sejam a nós, gêmeos, plenas! / Como tu beber e amar / será o orgulho, a minha sina!”

Se o intertexto levantino de Goethe — “Admite! Os poetas do Oriente / são maiores que os do Ocidente”, lemos no “Livro dos provérbios” — já estava muito distante do leitor alemão das primeiras décadas do século XIX, tanto mais remoto ele se encontra em relação ao leitor brasileiro contemporâneo e, nesse sentido, lhe seriam muito bem-vindas notas breves e objetivas que elucidassem alusões e referências de que os poemas são pródigos. É certo que o próprio poeta pospôs ao seu ciclo lírico um 13º livro em prosa (“Notas e ensaios para melhor compreensão” do Divã”) justamente para facilitar a orientação do leitor nesse diálogo poético que se estende por cinco séculos; contudo, mesmo assim o leitor terá de pesquisar por conta própria a fim de captar em níveis mais profundos o sentido de certos poemas, e isso não apenas no tocante a conceitos e elementos do mundo islâmico, como se manifestam em dois poemas intitulados “Fátua”, mas por vezes também em relação à cultura ocidental. Por exemplo, quando Goethe, criticando a hipocrisia religiosa (tão atuante entre nós), delineia um paralelo entre as adversidades impostas a Hafez e Ulrich Hutten por “hábitos marrons e azuis”, na metonímia original, traduzida de maneira explicativa por “monges cristãos e muçulmanos”. (Uma elucidação concisa sobre Ulrich Hutten, humanista alemão que viveu entre 1488 e 1523, seria certamente bastante útil ao leitor brasileiro nesse poema.)

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