Divã é um substantivo de origem persa e significa, em sentido literário, “ciclo” ou “coletânea”. De certo modo, esse extenso conjunto de poemas inspirados em Hafez e outros poetas persas e árabes, pode ser visto como pendant “oriental” às Elegias romanas, escritas após a viagem italiana entre setembro de 1786 e abril de 1788 e publicadas integralmente apenas em 1914. Entre os poemas mais conhecidos do Divã está Selige Sehnsucht, título que o tradutor Manuel Bandeira condensou numa única palavra: “Anelo”. Martineschen o traduz por “Anelo abençoado”, enquanto a versão do português Paulo Quintela traz “Nostalgia de bem-aventurança”. (“Nostalgia” é também a opção do famoso tradutor espanhol Rafael Cansinos Assens: “Dichosa nostalgia”.)
Há ainda outras traduções desse poema para o português, mas não será demérito para nenhuma delas, incluindo-se a de Martineschen, afirmar que o autor do “Gazal em louvor de Hafiz”, um dos poemas mais musicais de toda a lírica brasileira, colocou-se num patamar incomparável ao dar aos heptassílabos de seu “Anelo” o ritmo melífluo, sem tropeço algum, que pode ser exemplificado com a última das cinco estrofes: “‘Morre e transmuda-te’: enquanto / Não cumpres esse destino, / És sobre a terra sombria / Qual sombrio peregrino”. A tradução de Martineschen reproduz fielmente, ao contrário da bandeiriana, a duplicação do pronome demonstrativo (“isto”) presente no original sob a forma de das e dieses, mas perde a correspondência entre “hóspede turvo” e “terra sombria”, mediante a qual os termos se reiteram e intensificam: “Se isto não te habita, / isto: morre e te transforma! / Não passas de visita / Na terra sem forma”. Já Quintela preserva a correspondência (“conviva turvo” e “trevas”, uma vez que transforma em substantivo o adjetivo goethiano que qualifica “terra”), mas conferindo um peso excessivo ao fecho do poema com o conceito “terra-mãe”: “E enquanto não entenderes / Isto: — Morre e devém! —, / Serás só turvo conviva / Nas trevas da terra-mãe”.
Outro célebre poema do Divã foi inspirado por um Oriente ainda mais remoto do que as terras de Chiraz ou Samarcanda: “Gingo biloba”, título que alude à folha bilobada da árvore Ginkgo (por razões sonoras Goethe omitiu o “k” na terceira versão do poema), originária da China e do Japão. Como em “Anelo”, a mensagem desse poema do “Livro de Zuleica”, nada dizendo ao “vulgo”, está destinada a edificar os “sábios”. Martineschen traduz exemplarmente em redondilhas maiores, valendo-se de sinalefas, mas também de hiato no quarto verso, o ritmo alemão trocaico de quatro acentos:
Folha de árvore do Oriente
que no meu jardim se faz,
dá-me a ver sentido ausente
que aos sábios só apraz.
Será apenas um vivo ser?
Que de si em si se parte,
serão dois? que, no colher,
dão em um sem que se aparte?
Pra atender a tais questões
alcancei um senso azado;
não vês tu nestas canções
que sou Um e duplicado?
Na primeira estrofe temos a apresentação da “folha” da árvore que, do Oriente, foi transplantada ao jardim do poeta, sugerindo-se uma correlação com a “folha” de papel que, contendo a terceira versão de “Gingo biloba”, integrou-se ao “florilégio” ocidental-oriental — ou “antologia”, para usar esse substantivo com conotações botânicas, já que oriundo do grego anthos, “flor”.