No diálogo entre Zuleica e Hatem — impregnado de símbolos como o bulbul e o hudhud (poupa eurasiática), pássaros provenientes da poesia de Hafez — nem sempre fica claro quem tomou a palavra. No último poema do “Livro de Zuleica”, por exemplo, não se explicita quem está falando e o mesmo ocorre na sextilha anterior, que a edição brasileira não separa claramente do poema de encerramento, o qual, sem ostentar um título particular, abre-se com o verso “Em mil formas podes te esconder”. Essas “mil formas” aludem aos 99 nomes que a tradição muçulmana atribui a Alá. Martineschen transpõe para sua versão a monorrima presente nos versos pares do poema assim como outros detalhes do esquema rímico goethiano; contudo, ao leitor brasileiro fica a impressão de que é a mulher que se dirige ao amado, quando se trata do contrário, conforme indiciam os epítetos femininos que, na tradução, aparecem incorretamente como masculinos: Oniamado, Onipresente, Onilisonjeiro e mais sete do tipo, até chegar na derradeira estrofe: “O que sei com senso externo, interno, / tu Oni-instrutor [no original: Allbelehrende, a que tudo ensina, Oni-instrutora] conheço por meio de ti; / e quando os nomes de Alá, cem, externo, / em cada um ressoa um nome de ti”.
Globalização e Literatura Mundial
De todo modo, soluções mais discutíveis ou mesmo eventuais equívocos que possam ser apontados neste Divã ocidento-oriental (facilmente sanáveis para uma próxima edição) em nada diminuem os méritos de uma tradução a que o próprio Goethe não deixaria de prestar reconhecimento. Numa carta que enviou em janeiro de 1828 a Thomas Carlyle, que quatro anos antes publicara sua tradução dos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, o poeta lança mão do vocabulário do comércio, que ele via em processo de crescente globalização, para valorizar o papel do tradutor na constituição de uma literatura também cada vez mais globalizada, a que ele chamou Weltliteratur. Pois apesar de suas insuficiências intrínsecas, a tradução é vista por Goethe como “um dos negócios mais importantes e dignos na movimentação geral do mundo”. E em seguida, o epistológrafo recorre ao mesmo campo metafórico que nos anos anteriores havia impregnado seu Divã: “O Alcorão diz: ‘Deus deu a todo povo um profeta em sua própria língua’. Assim todo tradutor é um profeta para seu povo”.
Disponibilizando ao leitor brasileiro a primeira tradução integral em língua portuguesa do intenso diálogo poético do autor do Fausto com a tradição persa e árabe, Martineschen oferece ao mesmo tempo uma contribuição inestimável à nossa cultura — um feito que se mostra tão mais notável à luz de seu empenho em reproduzir com rigor a estrutura formal dos poemas alemães — ao contrário, por exemplo, da tradução espanhola de Rafael C. Assens.
Fazer com que Hatem e Zuleica dialoguem em português em “igual palavra e som”, não apenas “olhar a olhar”, mas também “rima a rima” — como diz o poema “Bahram-Gor, dizem, inventou a rima” — representa um objetivo para cuja magnitude, mas também risco, o próprio Goethe chamou a atenção ao discorrer sobre as vantagens de uma tradução em prosa, como meio para se contornarem as imensas dificuldades de uma tradução em versos. Já nas “Notas e ensaios” que acompanham seu Divã, o poeta lamenta que a Canção dos Nibelungos (início do século XIII), redigida em alto-alemão médio (Mittelhochdeutsch) e em estrofes de quatro versos rimados em parelha (“estrofes dos Nibelungos”), não tivesse sido traduzida para o alemão moderno numa “prosa útil”, o que teria propiciado ao leitor uma fruição desse heroico épico medieval em “toda sua força”. Também numa conversa (18 de janeiro de 1825) com Eckermann sobre canções sérvias, Goethe sugere que os encantos dos versos populares eslavos transpareceriam numa simples tradução em prosa de seus “motivos”. Sobre essa questão da traduzibilidade de versos manifestaram-se, como sabido, grandes nomes da Literatura Mundial, e já Dante, cinco séculos antes de Goethe, negava a possibilidade de preservar “toda a doçura e harmonia” de uma criação em versos ao traduzi-la “da sua língua para outra”.[3]
Daniel Martineschen, felizmente, não se deixou guiar por semelhantes concepções e, com isso, seu Divã ocidento-oriental apresenta ao leitor preciosos exemplos da arte tradutória in the realms of gold, como John Keats chamou o “reino da poesia”. Primorosas, por exemplo, são as três quadras em redondilha menor do poema “Aparição”, o qual, imantado pelo símbolo do arco-íris não só colorido, mas também branco (por trás do qual se oculta a teoria goethiana das cores), culmina na estrofe: “Tu, velho querido, / não deves chorar; / teu cabelo é embranquecido, / mas tu vais amar”. Igualmente sóbria e admirável é a tradução do “Livro de leitura”, inspirado em poemas que Goethe — também o poeta cometeu seus deslizes… — atribuiu ao persa Nezami (1141–1209), mas na verdade provenientes do turco Nischani (século X): “Maravilhoso livro dos livros / é o livro do amor! / Atencioso eu o li: / pouca folha de alegria, / cadernos todos de dores; / uma seção faz a separação. / Reencontro! Um só capítulo, / fragmentário. Tomos de mágoa / alargados com explicações, / infindas, sem medida”.
O leitor que percorrer as páginas desse primeiro Divã goethiano em língua portuguesa estará palmilhando os caminhos e jardins de uma Chiraz que o “gêmeo” de Hafez amalgamou a paisagens renanas, resultando dessa fusão uma utopia de elevada poesia, envolta pelo canto do bulbul e do hudhud, mensageiro amoroso já nos tempos “do rei Salomão e da rainha de Sabá” (poema “Saudação”, no “Livro do amor”), e sabendo a denso odor de rosas, jasmins e do vinho celebrado em incontáveis versos.