Biografia de Goethe
Johann Wolfgang von Goethe nasceu em 28 de agosto de 1749, na cidade de Frankfurt, na Alemanha. Seu pai, Johann Caspar Goethe (1710-1782), era um rico conselheiro imperial. Assim, o poeta pôde ser educado em casa, por meio de vários tutores, e adquiriu conhecimentos científicos, culturais e artísticos.
Sua paixão pelo teatro surgiu ainda na infância, assim como seu gosto pela leitura. Porém, o pai exigiu que ele estudasse Direito. Assim, o escritor iniciou o curso na Universidade de Leipzig, em 1766. Retornou a Frankfurt por volta de 1768, para convalescer de uma doença pulmonar.
Em 1770, partiu para Estrasburgo com o intuito de continuar os estudos. E, no ano seguinte, finalmente se formou em Direito. Fez estágio, em 1772, no Tribunal da Câmara Imperial da cidade de Wetzlar. Dois anos depois, em 1774, publicou seu romance mais famoso: Os sofrimentos do jovem Werther.
Após o estrondoso sucesso do livro, Goethe se mudou para Weimar e ficou noivo, em 1775, de Lili Schönemann (1758-1817), mas logo o compromisso foi rompido. Foi também em 1775 que Goethe publicou a primeira parte da peça teatral Fausto, sua obra mais conhecida. O autor se tornou membro do conselho de Estado, em Weimar, no ano de 1776. No ano de 1779, viajou à Suíça, em companhia do duque Karl August (1757-1828).
Por sua vez, em 1783, ingressou na sociedade secreta conhecida como Illuminati. Em 1787, também conheceu Nápoles e a Sicília, na Itália. No ano seguinte, voltou a Weimar, onde se envolveu com a operária Christiane Vulpius (1765-1816), com quem teve um filho chamado August, nascido em 1789.
O escritor, em 1790, foi nomeado ministro da Educação e da Cultura de Weimar. Já em 1794, escreveu para o jornal Die Horen, de Friedrich Schiller (1759-1805). Em 1807, finalmente se casou com a mãe de seu filho. Mas, em 1816, ficou viúvo e fundou a revista Sobre Arte e Antiguidade. Goethe morreu em 22 de março de 1832, em Weimar, logo após escrever a segunda parte de Fausto.
Características literárias de Goethe
Johann Wolfgang von Goethe fazia parte movimento alemão Tempestade e Ímpeto, um movimento de caráter romântico que defendia o retorno do ser humano à natureza. Goethe, portanto, é um dos primeiros românticos. E suas obras são caracterizadas pela subjetividade e exagero sentimental.
O romantismo é um estilo de época que valoriza a individualidade, as emoções e a liberdade. As obras de Goethe apresentam essa característica, além da idealização do amor e da mulher. Ademais, os autores desse estilo fazem um enaltecimento do passado, mas Goethe também abriu espaço para a crítica social de seu tempo.
Principais Obras de Goethe:
Marcus Mazzari
Na correspondência de velhice de Goethe a expressão “atuação à distância” registra marcante presença. Wirkung in die Ferne é a formulação original, que tem também o sentido de atuação em espaços distantes. Encontramos um exemplo dessa ocorrência na carta enviada no dia 30 de junho de 1831 ao conde boêmio Kaspar Maria von Sternberg (1761 – 1836), considerado hoje o fundador da paleobotânica. Após discorrer sobre diversos assuntos científicos, Goethe comunica por fim que só pode congratular-se com o amigo à distância – ou “remotamente”, no advérbio que começou a alastrar-se pelo mundo nos primeiros meses de 2020, com a pandemia de Covid:
“E assim divido minha pessoa em duas, na medida em que a física, em consonância com a idade, permanece entre quatro paredes, enquanto a espiritual, participando intensamente a despeito da espacialidade que se esvanece, cumprimenta e abraça o honrado amigo”.
Com a crescente perda de mobilidade intensifica-se na vida do ancião a aspiração por “atuação à distância”, o que se realiza sobretudo por via epistolar.
Mas também mediante o envio de seus trabalhos, Goethe procurava percorrer in absentia física seu vasto círculo de relações. Um exemplo nos dá a “palavrinha” que, acompanhando sua introdução às obras do romancista e poeta italiano Alessandro Manzoni, é dirigida em 20 de abril de 1827 ao botânico Christian G. Nees von Esenbeck (1776 – 1858), que quatro anos antes estabelecera cientificamente, em cooperação com Martius, uma malvácea endêmica do Brasil batizando-a com o nome Goethea: “Como anseio por atuação à distância e da distância”, escreve o poeta reforçando o efeito visado com um segundo complemento nominal, “da distância” (aus der Ferne).
Quando Goethe envia essa “palavrinha” a Nees von Esenbeck, seu nome já estava atuando no distante Brasil, mas ainda de maneira incipiente e associado eminentemente ao Werther, que fora traduzido ao português em 1821. Na direção inversa, o próprio Goethe já dispunha de alguma informação sobre a literatura brasileira do final do século XVIII e início do XIX, graças à sua correspondência com o botânico Martius, que entre 1817 e 1820 percorrera a imensa colônia portuguesa ao lado do zoólogo Johann Baptist Spix (1781 – 1826). Tendo adquirido bom domínio não só do português, mas também da língua geral do Brasil (tupi), Martius, que em 1831 concluiria seu Bildungsroman Frey Apollonio (com o subtítulo: Um romance do Brasil), envia a Weimar, em 13 de janeiro de 1825 – além de poemas de sua própria autoria, concebidos sob o Cruzeiro do Sul junto à torrente amazônica – valiosos frutos de suas pesquisas etnográficas, ou seja, canções dos povos originários da terra percorrida, traduzidas para o alemão e comentadas com essas palavras:
“Também me deparei com algumas pequenas canções de origem indígena, em tupi ou língua geral, as quais me atrevo a revelar a Vossa Excelência antes que encontrem o seu lugar em minha Descrição de Viagem. A mim, que ao menos em parte posso sentir o idioma daqueles filhos da natureza em sua lacônica pobreza, essa expressão de aspereza nos sentimentos e mesmo nas relações sensoriais tem algo de tragicômico. Não é como se o gênero humano tivesse de acostumar-se apenas aos poucos a manejar mentalidade e costumes humanos, à semelhança de roupas ou de um instrumento?”
Tão somente quatro meses mais tarde, o jovem botânico, que iniciara carreira científica em Munique, contempla Goethe com alguns comentários panorâmicos sobre a literatura brasileira e lusitana de então. Nessa carta de 18 de maio de 1825, Martius busca contextualizar a epopeia Caramuru, publicada em 1781 por Santa Rita Durão (1722 – 1784), na tradição épica da península ibérica, tecendo-lhe contudo duras críticas (“em seu conjunto tão enregelada, pálida e pouco poética”) ao compará-la com o poema nacional dos portugueses: Os Lusíadas de Camões.
Tendo provavelmente em mente o ideal neoclássico dos poetas árcades de Minas Gerais, Martius observa nessa mesma longa carta que não encontrara na jovem literatura brasileira quaisquer traços de baladas ou romanças heroicas, nenhum vestígio de tendências pelo macabro ou fantasmagórico. Não sendo raro que as concepções do destinatário de uma carta também participem de sua elaboração, essas observações certamente não terão desagradado ao velho poeta que poucos anos depois teceria duríssimas críticas a Victor Hugo justamente em virtude de uma suposta exacerbação de tendências românticas (ou já ultrarromânticas) que estariam ausentes de nossa literatura.
Goethe no Romantismo brasileiro
É verdade que as informações sobre a literatura brasileira que Martius envia a Goethe em 1825 apresentavam significativas lacunas: por exemplo, ele silencia sobre a epopeia O Uraguay (1769), de Basílio da Gama (1741 – 1795), à qual o ‘enregelado e pálido’ Caramuru pode ser visto como uma resposta. No geral, entretanto, suas considerações mostram-se procedentes, pois naquelas alturas o romantismo ainda não dera sinal de vida na imensa colônia portuguesa, ao contrário do que ocorria em países europeus, sobretudo na Alemanha, onde são publicados, entre 1798 e 1800, seis números da revista Athenaeum, fundada pelos irmãos Schlegel como porta-voz do movimento romântico. Logo, porém, o quadro literário esboçado pelo botânico iria sofrer profundas transformações e um marco nessa inflexão foi a publicação, por Gonçalves de Magalhães, de Suspiros Poéticos e Saudades em 1836, sendo que já no ano seguinte o Jornal dos Debates, Rio de Janeiro estampa um longo artigo sobre a obra e a vida de Goethe. Com defasagem de algumas décadas em relação à Europa tem início o movimento romântico no jovem país que conquistara sua independência em 1822. Também começa a intensificar-se, no bojo desse processo, a circulação de obras goethianas, agora não mais prioritariamente mediadas por edições francesas e portuguesas, mas no original, graças em grande parte a professores alemães contratados para atuar em instituições de ensino brasileiras. Proeminente exemplo é o Barão de Tautphoeus (Jakob Joseph Hermann von Tautphoeus: 1814 – 1890), que chega ao Rio de Janeiro para lecionar a diversas gerações que passaram pelos bancos do Colégio Pedro II. Sobre essa influência Sílvio Romero, também ele um discípulo tardio do barão, apresenta-nos em seu estudo Evolução do lirismo brasileiro um expressivo testemunho:
“Com Alvares de Azevedo, o trabalho começado pelos primeiros românticos para arrancar-nos da influência portuguesa, progrediu consideravelmente. O moço poeta, educado pelos alemães Planitz [Karl Robert von Planitz (1806 – 1847)], a princípio, e, mais tarde, Tautphoeus no Colégio de Pedro II, costumou-se a olhar para o grande mundo das letras e da poesia e a ler os grandes mestres gregos, latinos, ingleses, alemães, espanhóis e franceses”.
O advento de uma “Literatura Mundial”, fenômeno que Sílvio Romero exprime nessa passagem, já fora captado com clarividência pelo velho poeta alemão, que em 27 de janeiro de 1827 comunicava ao tradutor da Divina comédia, Karl Streckfuß, estar convencido de que uma Weltliteratur estava em processo de constituição, repetindo a mesma convicção seis meses depois a seu tradutor para o inglês Thomas Carlyle.
Anunciada em cartas, conversas, textos de diversas ordens (incluindo-se poemas em que que o Brasil comparece com canções tupis), essa ideia goethiana de uma literatura globalizada encontraria respaldo também no continente sul-americano e no Brasil, ainda que os rumos tomados então pela nossa jovem literatura não iriam corresponder propriamente ao gosto e às expectativas do arauto de uma “Literatura Mundial”.
Com seu fascínio pelo fantasmagórico e macabro, de que a magistral balada “Meu sonho”, com seu “cavaleiro das armas escuras” desabalado “pelas trevas impuras”, oferece testemunho; também com a inclinação pelo mundo satanicamente noturno que se realiza no drama Macário (1852) e se exacerba pouco depois nas narrativas emolduradas de Noite na Taverna, Álvares de Azevedo (1831 – 1852) encarna a figura que de modo mais radical subverteria os comentários enviados por Martius a Weimar. Todavia, como ocorre nos diversos movimentos românticos fora da Alemanha, o autor do Werther e do Fausto, títulos que aparecem com destaque no Prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos, é reivindicado pelo jovem poeta brasileiro como uma de suas principais inspirações. Essa reivindicação pressupõe certamente o desconhecimento da aversão do Goethe clássico perante tendências que, em nosso país, se manifestavam também em Junqueira Freira, Fagundes Varela e outros integrantes da segunda geração romântica – tendências merecedoras da expressão “poesia de hospital”, como assinala Alfredo Bosi (1936 – 2021), apoiando-se explicitamente em Goethe, em sua História concisa da literatura brasileira (1970).
O nome Goethe desponta na obra de românticos brasileiros desde a primeira geração e o exemplo mais célebre será talvez a epígrafe da “Canção do exílio”, tomada por Gonçalves Dias à balada de Mignon, a trágica personagem romântica e italiana do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Mas também de forma implícita a obra goethiana exerceu forte influência sobre o advento e desdobramentos do romantismo brasileiro, o que é enfocado com grande originalidade por um dos maiores historiadores de nossa literatura. Em sua Formação da literatura brasileira, Antonio Candido (1918 – 2017) vislumbra no Fausto uma força fundamental na consolidação do romantismo europeu, com implicações decisivas para a chegada desse movimento literário ao Brasil. No segmento “Revisão de mundo”, o crítico levanta várias facetas da influência que o Fausto I irradiou sobre o romantismo brasileiro. Ressalte-se apenas o significado que Candido atribui à cena do pacto: a própria cláusula do pacto-aposta (“Se vier um dia em que ao momento / Disser: Oh, para! és tão formoso! / Então algema-me a contento, / Então pereço venturoso! […] / O Tempo acabe para mim!”, vv. 1.699-1.706) exprimiria com máxima intensidade o anelo romântico por um momento absolutamente singularizado, de felicidade tão plena que pudesse levar ao desejo de suspensão da temporalidade.
Uma vez, contudo, que semelhante aspiração não se mostra passível de concretização na imanência histórica, a frustração daí decorrente teria engendrado, na argumentação de Candido, o sentimento de inadequação à vida que se encontra na raiz de fenômenos como o mal du siècle e o “satanismo”, tão fortes na obra de Álvares de Azevedo.
Esse ângulo de visão, enriquecido de várias outras considerações que não serão comentadas aqui, faz o autor da Formação da literatura brasileira enxergar no Fausto “o mais completo breviário do que a alma romântica tem para nós de essencial”, caracterização parcialmente estendida também à segunda parte da tragédia: ao episódio de Filemon e Baucis e o aniquilamento de seu velho mundo em torno de duas tílias, “grumo indigesto para a nova vertigem do tempo”. Para a consciência romântica, esse antiquíssimo horto teria passado a representar a alternativa historicamente condenada, gerando a relação ambivalente com a natureza que o crítico diagnostica em inflexões do romantismo europeu e, algumas décadas depois, também no brasileiro.
“Mais luz!” e a recepção de Castro Alves
Quarenta anos após ter publicado seu estudo clássico sobre a formação da literatura brasileira, Candido iria estabelecer nova comparação entre o Fausto e a obra de um dos mais proeminentes românticos brasileiros. Agora, porém, se trata de uma aproximação pontual, feita à luz de uma modalidade lírica que o crítico chama de “ascensional”. O substantivo “albatroz”, no título do ensaio que abre o livro homônimo O Albatroz e o Chinês (2004), já indicia o primeiro passo na argumentação crítica: apresentar o famoso poema de Baudelaire como paradigma, na poesia moderna, da modalidade ascensional, representada, nas Flores do mal, também pelo poema “Élévation”.
Vinte e seis anos mais moço do que Baudelaire, Castro Alves (1847 – 1871), figura de proa na terceira fase do romantismo brasileiro, é igualmente visto por Candido na chave dessa “poesia ascensional”, sendo que o crítico não deixa de apontar para uma diferença crucial: o poeta baiano atribui-se asas poderosas – as do condor, da águia e mesmo do albatroz – a fim de, da elevada perspectiva de tais aves, penetrar com tanto maior acuidade a realidade histórica que é mister transformar, como a “infâmia e cobardia” que, recobertas pela enxovalhada bandeira imperial, são contempladas altaneiramente no poema “O navio negreiro”.
Castro Alves celebra, portanto, o voo do albatroz, “águia do oceano”, e entrega-se a um sonho alado não para fugir à realidade hostil aos ideais de poeta libertário, mas sim para melhor ver e compreender o mundo. Esse mesmo movimento, pode-se acrescentar, verifica-se em outros poemas, como o de sugestivo título “O povo no poder”, com a famosa celebração do condor: “A praça! A praça é do povo / Como o céu é do condor”.
Nesse sentido, se por um lado o “condoreiro” romântico se diferencia da élévation baudelairiana, ele revela profundas afinidades com o devaneio alado do doutor Fausto na cena “Diante da porta da cidade” em que Candido enxerga a matriz fundamental dessa poesia ascensional, isto é, o sonho de um voo que possa vencer continuamente o ocaso do dia para contemplar o mundo sempre à claridade do sol e assim ganhar acesso cada vez mais aprofundado à natura naturata, mas sobretudo à natura naturans, no conceito da filosofia spinozista.
A aproximação que o ensaio “O albatroz e o chinês” promove entre Castro Alves e Goethe, “afirmativa” no tocante à aceitação do mundo, encontra respaldo no modo pelo qual o poeta baiano realizou a recepção do autor do Fausto e do Werther, romance que de modo implícito percorre todos os versos do poema “Remorsos”. O titânico condoreiro, “embriagado de modernidade”, na expressão tomada à Formação da literatura brasileira, acolheu a figura de Goethe na chave de um progressismo expresso em intenso pathos retórico, que enaltece ideais libertários e avanços da civilização industrial. Basta considerar, nesse sentido, as duas últimas estrofes do poema “O Livro e a América”, no volume Espumas flutuantes, escrito pelo estudante de Direito em São Paulo. Após cantar os feitos de Colombo e Gutemberg, o poema desemboca na apologia do “trem de ferro”, que rasga os sertões brasileiros espantando feras selvagens e “caboclos nus”, apostrofado assim “ginete dos pensamentos” e “arauto da grande luz”. Na estrofe conclusiva do poema, a metáfora da luz retorna associada justamente ao poeta cujas últimas palavras teriam condensado simbolicamente sua longa existência: “Como Goethe moribundo / Brada ‘Luz!’ o Novo Mundo /…”
A reivindicação, atribuída a Goethe, de “luz”, de “mais luz”, converte-se em emblema de uma ideologia heroica do progresso, capitaneada por uma burguesia esclarecida e liberal, no sentido de um Joaquim Nabuco ou Luiz Gama. O desconhecimento da relação ambivalente de Goethe com ideologias do progresso, expressa em diversas cartas de velhice, é patente. De todo modo, a leitura que o jovem romântico “embriagado de modernidade” faz da obra goethiana ilustra de maneira notável a constatação tomista quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur: “tudo o que é recebido, é recebido ao modo do receptor”, princípio fundamental da chamada Estética da Recepção.
Balizada por nobres ideais libertários, pela sua imensa generosidade, a imagem que Castro Alves constrói do poeta alemão ocupa lugar sui generis na literatura brasileira. É algo bastante diferente encontramos em Machado de Assis, que em todos os romances de sua fase madura faz alusões e referências à principal obra goethiana, o Fausto. Em Memorial de Aires, publicado no mesmo ano da morte do autor (1908), a aposta entre Deus e Mefistófeles, que já desempenhara papel estruturador no conto “A igreja do diabo”, lança um arco temporal sobre a linha central do enredo romanesco: a aposta, selada no cemitério São João Batista, entre o conselheiro aposentado Aires e sua irmã Rita acerca de um eventual novo casamento da bela viúva Noronha: “Fui à minha pequena estante e tirei o volume do Fausto, abri a página do prólogo no Céu, e li-lha [à irmã Rita], resumindo como pude”) e, mais de um ano depois, acontecem as bodas da viúva com Tristão: “[…] mana Rita veio trazer-me a notícia oficial do casamento […] fiz um gesto de triunfo, perguntando-lhe quem tinha razão no cemitério, há um ano” – e então o “Prólogo no Céu” é comentado mais uma vez.
Entre parêntese: um episódio do último romance machadiano profundamente sintonizado com concepções goethianas de velhice, no caso à rejeição do que o poeta designou com o neologismo “velocífero” (“a nova vertigem do tempo”, na acima citada expressão de Antonio Candido), encontramos entre as anotações iniciais de Aires em seu diário: a viagem de trem até Petrópolis, ao lado do desembargador Campos, entusiasta do progresso, da rapidez e, portanto, também do trem de ferro, “arauto da grande luz”: “Só o tempo que a gente poupa!”, exclama Campos. Adepto, antes, das antigas caleças puxadas por burros, que permitiam o pleno desfrute dos encantos da paisagem, o diplomata Aires prefere não iniciar uma discussão sobre as benesses do progresso: “Eu, se retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma espécie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto”. (Numa carta de 8 de junho de 1864, o rei da Baviera Ludwig I recorda-se de ter ouvido de Goethe, numa conversa de 1827 sobre o alvissareiro futuro das viagens com o trem de ferro, a lacônica observação: “O aroma da ameixa desaparece!”)
É claro que a bucólica postura de Aires, ou o lamento pelo desaparecimento do aroma das ameixeiras, das tílias etc., representa “a alternativa historicamente condenada”, que segundo Candido teria impulsionado com força decisiva o advento do romantismo. Nesse sentido, o modo pelo qual Castro Alves realizou sua recepção de Goethe foi mais condizente, considerando apenas o aspecto material do progresso, com os rumos tomados pelo vertiginoso aperfeiçoamento dos meios de transporte e comunicação.
Num aspecto importante, essa recepção revela afinidades com uma outra que se deu em altíssimo patamar da Literatura Mundial. A metáfora da luz, a aspiração por “mais luz”, que no poema “O Livro e a América” promove a fusão entre os ideais do poeta alemão e do continente americano, desempenha relevante papel na recepção que Thomas Mann dispensou à obra de seu conterrâneo falecido um século antes de Hitler ascender ao poder. É o que sugere o fecho do alentado ensaio “Fantasia sobre Goethe”, publicado em 1948 como introdução a uma antologia americana de textos goethianos. Nas últimas palavras atribuídas a Goethe (“Mais luz!”), o romancista de Lübeck – e com raízes maternas brasileiras – também vislumbra, como o poeta baiano sete décadas antes, sua derradeira, vigorosa e inequívoca mensagem à posteridade, a afirmação incondicional da vida, que teria igualmente se manifestado, segundo o autor da “Fantasia”, na conclusão de uma carta a um amigo berlinense datada de seis de novembro de 1830: “Ao fim, não resta outra coisa senão seguir em frente!” (Es gilt am Ende doch nur Vorwärts!)
No ano seguinte, a imagem de um Goethe esclarecido, avesso a toda concepção retrógrada reforçou-se em dois outros grandiosos ensaios: “Goethe e a democracia” e o discurso por ocasião do segundo centenário do nascimento do poeta, apresentado nas duas Alemanhas. Thomas Mann nos oferece uma leitura que não enxerga nenhum vestígio de reacionarismo, de escárnio à ação ou de “derrotismo conservador” na obra goethiana, tanto na segunda parte do Fausto como no romance de velhice Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister.
A inflexão que Thomas Mann, sobretudo após a publicação d’A montanha Mágica, conferiu à sua recepção de Goethe sofreu o impacto de convicções republicanas e democráticas, da mesma maneira como os ideais abolicionistas condicionaram a leitura que Castro Alves fizera do poeta alemão, que em seu panteão se encontra irmanado a Victor Hugo.
São, afinal, os leitores que insuflam vida aos grandes textos do passado ao impregnar os enredos e imagens que se desenrolam perante seus olhos com elementos de suas próprias experiências históricas, as quais, por seu turno, ganham ampla validade humana por meio do confronto com os textos.
Quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur: essa constatação precursora da Estética da Recepção vale também – voltando ao terreno da crítica – para a leitura que Alfredo Bosi fez do Fausto em seu livro Ideologia e contraideologia (2010). Os densos ensaios “Lendo o Segundo Fausto de Goethe” e “O projeto fáustico entre o mito e a ideologia” delineiam uma visão da tragédia de Goethe na chave de uma “literatura de resistência”, oferecendo ao mesmo tempo extraordinária contribuição à recepção que Goethe vem experimentando no Brasil do século XXI, com uma quantidade excepcional de monografias, novas traduções e publicações de diversas ordens.
“Lendo o Segundo Fausto” esboça um modelo interpretativo do processo colonizador brasileiro à luz do drama goethiano, estabelecendo uma fecunda comparação com a obra e o engajamento do Padre Antônio Vieira (1608 – 1697), que em 20 de abril de 1657 enviou uma carta ao rei de Portugal Afonso VI denunciando o genocídio de indígenas no Maranhão e na região amazônica com uma cifra assombrosa, mas na qual historiadores posteriores, entre os quais Darcy Ribeiro, não veem exagero algum: “As injustiças e tiranias que se têm executado nos naturais destas terras excedem muito às que se fizeram na África: em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo”. Bosi busca iluminar genocídios como esse denunciado por Vieira também à luz da tragédia goethiana.
Já o subsequente ensaio “O projeto fáustico entre o mito e a ideologia” enfoca de maneira mais concentrada os efeitos da ideologia do “progresso” ou do “desenvolvimento” nas sociedades industriais. Com o aprofundamento, nesse ensaio, da perspectiva ecológica, que sempre foi muito forte na obra de Alfredo Bosi, o autor veio alinhar-se entre os intérpretes que estabelecem vínculos entre o pacto selado entre Fausto e Mefistófeles e as devastações ambientais que hoje confrontam o planeta com ameaças inéditas de aquecimento global, mudanças climáticas, extinções de espécies etc. Nesse sentido valeria citar o seguinte trecho do ensaio: “Transcorridos dois séculos da concepção do drama goethiano, olhamos em torno de nós e, em meio ao que restou da natureza depois das investidas da revolução industrial, sentimos que é necessário lutar contra as mesmas forças que arrasaram a casa de Filemon e Baucis e queimaram as suas velhas tílias. Falamos em ‘desenvolvimento sustentável’, que os franceses exprimem com uma conotação temporal (développement durable), e temos a esperança de deter o processo de aquecimento global. Ainda e sempre o fogo, emblema dos ínferos!”
Essa mesma perspectiva ecocrítica vigora na monografia de minha autoria, A dupla noite das tílias. História e natureza no Fausto de Goethe, a qual tem sua principal linha de força no empenho em vislumbrar nas imagens e sequências cênicas da tragédia uma “fórmula ético-estética” para a destruição da natureza. Trata-se assim de um esforço hermenêutico que se processa igualmente perante o pano de fundo de questões candentes no atual debate ecológico, mas com o foco concentrado nas destruições que ocorrem nos biomas brasileiros: o cerrado, cujo desaparecimento é também tematizado no romance fáustico Grande Sertão: Veredas, na mata atlântica, e especialmente na floresta amazônica, com a qual Martius familiarizou Goethe através de cartas, poemas e outros textos.
A perspectiva ecocrítica representa, portanto, uma vertente fundamental na recepção da obra de Goethe que se desenvolve atualmente no Brasil, país que experimentou nos últimos anos um recrudescimento das atividades ilegais de garimpeiros, madeireiros, pecuaristas na região amazônica, onde em 2013 veio à tona uma nova tragédia a atingir o povo yanomami.
Se nesse contexto a dimensão ecológica se mostra inteiramente legítima, como o foi a recepção realizada pelos nossos românticos, assim como a recepção cética, descrente do progresso, de Machado de Assis ou a do antifascista Thomas Mann, isso evidentemente não significa descartar outras possíveis leituras, desde que respeitado o princípio hermenêutico de se evitarem abusos interpretativos. Nessa obra afinal, parafraseando a definição goethiana de símbolo, a “ideia permanece sempre infinitamente ativa e inatingível”, o que pressupõe o advento de futuras exegeses, hoje ainda inimagináveis para nós.
Ao final desse percurso sobre a presença de Goethe no Brasil fica, assim, a imagem de um poeta cuja obra – extrapolando em muito os séculos XVIII, XIX e XX – representa a afirmação incondicional da vida que Thomas Mann vislumbrou no fecho de uma de suas admiráveis cartas de velhice: “Ao fim, não resta outra coisa senão seguir em frente!” Formulações como essa encontram-se com frequência na correspondência goethiana, como no fecho de uma carta de setembro de 1831 enviada ao amigo Zelter em Berlim: “Estou sempre aprendendo, somente por isso percebo que vou envelhecendo”.
Que essa imagem do arauto de uma Literatura Mundial possa continuar se afirmando com crescente força em nosso país – a imagem de um poeta determinado, a despeito de todos os revezes e obstáculos, a sempre “seguir em frente”, que envelhecia aprendendo continuamente e que mesmo nos derradeiros instantes – como lembram os versos de Castro Alves – não deixou de aspirar por “mais luz”.
Um episódio real da vida de Goethe serviu de motivo a Thomas Mann para humanizar o poeta e mostrar as suas contradições
A partir de um episódio da juventude de Goethe, Thomas Mann reescreve temas como a moral e as suas relações com a arte e a política, a vida da burguesia alemã, o erotismo, a poesia, a verdade.
Em 1772, um jovem jurista de 23 anos, Johann Wolfgang Goethe, que por essa altura também iniciava a sua actividade literária, foi estagiar para a pequena cidade de Wetzlar. Apesar de o ambiente não ser dos mais estimulantes, ele acaba por reencontrar num baile o secretário da nunciatura de Hannover, Kestner, acompanhado da sua noiva, Charlotte Buff, por quem se apaixona de imediato. Cria-se uma sólida amizade entre os três, um ménage à trois, com visitas constantes de Goethe à casa da família Buff. Mas, passado algum tempo, o jovem Goethe acaba por deixar a cidade sem se despedir pessoalmente dos noivos. Dois anos depois, o poeta alemão publica o romance epistolar A Paixão do Jovem Werther, em que o protagonista (seu alter-ego) continua a frequentar a casa do casal Kestner (enquanto prepara o suicídio, com que o romance termina), mas não sem realçar que a sua paixão por Lotte (diminutivo de Charlotte), a protagonista feminina, era correspondida. Sabe-se que a verdadeira Charlotte Kestner, quando já sexagenária, visitou a família em Weimar, em 1816, e foi convidada para almoçar em casa de Goethe (então com 67 anos), “o grande poeta da Alemanha”. Desde que o jovem poeta deixara Wetzlar, nunca mais se tinham visto.
Foi com base neste facto histórico (que mereceu a Goethe apenas duas breves notas escritas) que Thomas Mann escreveu as quase 300 páginas do romance Lotte em Weimar — o único do autor alemão que faltava traduzir para português. Escrito entre 1936 e 1939, este é um romance sobre o velho Goethe, ou, talvez melhor, um romance que, mais do que contrariar a tendência para o endeusamento do poeta, o vem humanizar, mostrar as suas contradições. A visita de Charlotte a Weimar funciona assim como um falso motivo para a escrita do romance, e não como a sua “causa”. “Mas aqui vê-se que os homens — e para mais os poetas — só pensam em si; pois a ele não lhe passa pela cabeça que nós temos de suportar as misérias da curiosidade tanto como ele, e ainda por cima há tudo aquilo que ele nos fez, ao teu bom e saudoso pai e a mim, com aquela sua desastrosa mistura de poesia e verdade…”
Autoria:Thomas Mann
(Trad. Teresa Seruya)
Vega
Note-se que, por essa altura, o nazismo fazia um enorme aproveitamento do génio do poeta (aproveitamento esse que se iniciara já em 1932 com as comemorações enfáticas do centenário da morte de Goethe), mitificando-o de maneira a que servisse as suas intenções políticas. Na brilhante apresentação do livro feita por Teresa Seruya, recordam-se os três ensaios escritos por Mann para essa efeméride, que apontam para uma “desmonumentalização” feita em sentido contrário ao que se passava nos ilustres círculos académicos simpatizantes do nacional-socialismo. O nazismo oficial, logo em 1932, e em resposta a esses três ensaios, sublinha num jornal a total incapacidade de Thomas Mann para escrever sobre Goethe, considerando-o “um filosemita aparentado com judeus e um fraco, um pacifista”.
Lotte em Weimar
, um romance todo ele tecido e arquitectado em redor da visita de poucos dias daquela que foi a grande paixão do jovem Goethe e que lhe serviu de inspiração, é ao mesmo tempo (como muito bem nota a tradutora na introdução) uma reescrita dos temas que desde sempre foram explorados por Thomas Mann (e curiosamente também por Goethe): a moral e as suas relações com a arte e a política, a vida cosmopolita da endinheirada burguesia alemã, os estados pulsionais eróticos na juventude e na velhice, os mecanismos da criação artística, poesia e verdade, os demónios que vindos do inconsciente parecem assaltar de vez em quando as boas consciências, a decadência física, e o nacionalismo alemão em todas as suas variantes. De algum modo, este romance agora por cá publicado parece continuar um projecto antigo de Thomas Mann, o de tornar “relativa” a grandeza de Goethe e de fazer dele uma “personagem literária viva”, ao tratar a decadência física e psicológica do artista e “a tragédia das suas paixões tardias” (fizera-o 20 anos antes emA Morte em Veneza), como escreve Teresa Seruya.
Construído por nove capítulos, cada um representando de alguma forma a visita de uma personagem, Lotte em Weimar, não sendo um dos mais conhecidos livros do autor alemão, é um romance que faz de maneira singular, e talvez mais do que qualquer outro, um retrato e uma reflexão sobre as contradições e os mitos da Alemanha do século XIX.